domingo, 5 de fevereiro de 2012

O reverso da mentira ou As Quatro Verdades de Aloysio

Em um artigo bastante nervoso publicado esta semana, o senador Aloysio Nunes Ferreira (SP/PSDB/Serra) acusa o PT de mentir sobre o que aconteceu em Pinheirinho. O artigo é banal. Qualquer um interessado na posição hegemônica sobre o incidente estará melhor servido lendo os textos do porta-voz oficial da oposição, Reinaldo Azevedo. Talvez possa se atribuir ao texto aquele ar etéreo da obra rara, mas isso só porque a oposição parlamentar parece passar seu tempo jogando palitinho nos corredores do Congresso, a espera de algum Godot que lhe traga um fio de esperança, talvez de vitória em 2018, talvez apenas de redenção e descanso. Então uma manifestação assim tem lá seu charme, ainda que pela estranheza do inédito.


Mas pouco interessa, o conteúdo aparente ou o ato em si. Muito mais divertido é o conteúdo implícito, o complemento da escritura senatorial.


Logo  no primeiro parágrafo o autor declara seu objetivo. "Eis as mentiras", clama o Senador da República, "seguidas da verdade". Aloysio tem algo que nós, os não-eleitos, poucas vezes podemos reivindicar para nós. Ele aparentemente tem a Verdade. Vamos ver até onde essa Revelação nos leva.


Vamos antes combinar uma coisa: uma mentira não é uma força newtoniana, à qual sempre corresponde uma verdade de igual intensidade e sentido contrário. O que uma mentira esconde não é uma verdade, mas um interesse. O contraponto de uma mentira é, em geral, ou uma mentira melhor escrita ou uma mentira mais confortável. De qualquer forma, sempre uma mentira que atende a interesses diversos daquela à qual ela se opõe.


Aliás, vamos combinar outra coisa. Meu texto não é a favor do PT, apesar do artigo de Aloysio Nunes se chamar "As mentiras do PT". O senador quer apenas tirar uma casquinha, com vistas à eleição para prefeito no final do ano. O PT mal sabia da existência de Pinheirinho até a ação de desocupação ser executada e certamente não se importava. Os militantes diretamente envolvidos eram da esquerda luminosa do espectro. Me interessa aqui examinar as Verdades de Aloysio, não as mentiras reais ou supostas de seus adversários.


Mas chega de enrolar. Ao texto, cidadãs. Lembrem-se que no que vai abaixo cabe sempre a advertência pseudo-Beckettiana: Qualquer Semelhança com alguma Coincidência terá sido mera Realidade. 


A primeira mentira citada pelo senador é "O governo federal fez todos os esforços para buscar uma solução pacífica". E a Verdade de Aloysio aqui é exatamente o contrário: "Desde 2004, a União nunca se manifestou no processo como parte nem solicitou o deslocamento dos autos para a Justiça Federal". Apenas em 13 de janeiro, segue a Verdade, o Ministério das Cidades dignou-se a enviar à Justiça Estadual um "protocolo de intenções", que a juíza do caso decidiu (sic) ser apenas a demonstração de "uma intenção política vaga". 


Para além da estranheza de a "Justiça" declarar que um documento de um outro Poder "não diz nada", nesse caso pode ser até mais interessante admitir a Verdade senatorial e ver aonde ela nos leva. Ora, está bem, o Governo Federal não fez nada durante oito anos sobre um conflito eminentemente municipal, envolvendo uma disputa judicial que corria nos tribunais locais. Essa é uma tática diversionista normal da oposição, culpar o Governo Federal por qualquer problema ocorrido em qualquer lugar. Assim Lula foi acusado pelas mortes causadas por acidentes de avião, por desmoronamentos e por enchentes. Nada mais justo que a mesma medida seja usada para "acusar" Dilma de não resolver o problema do Pinheirinho. Exceto que agora, até por cautela, nossos bravos oposicionistas se furtam de acusar pessoalmente a Presidenta, como faziam com Lula. 


Mas o que fizeram aqueles que estavam próximos do problema? Eduardo Cury (PSDB/SP/?) é o prefeito da cidade desde 2005. Geraldo Alckmin (PSDB/SP/Alckmin e/ou Aécio) governava o Estado até 2006. José Serra (PSDB/SP/Serra) o sucedeu e governou de 2007 a 2010. Alberto Goldman (PSDB/SP/Serra) cumpriu o restante do mandato de Serra, sendo sucedido novamente por Alckmin, atual governador.


Esse é o complemento da Primeira Verdade de Aloysio. Durante oito anos, nem a prefeitura do PSDB nem o governo estadual do PSDB se dignaram a resolver um problema local envolvendo cerca de 9000 pessoas muito pobres. Me parece um complemento adequado. Me parece até algo que deveria constar do programa do PSDB:  se você quer alguém que se preocupe com os pobres, não vote em nós...


A segunda mentira é "Derramou-se sangue, foi um massacre, uma barbárie, uma praça de guerra. Até crianças morreram. Esconderam cadáveres". Parte disso é mentira mesmo, não há cadáveres nem morreram crianças, até onde se sabe. Aloysio primeiro acusa o PT explicitamente por um erro grave da Agência Brasil que, baseada em apenas um depoimento de um advogado dos moradores (que palavra deveria estar aqui? Invasores? Traficantes? Bandidos? Sem Teto? Pense nisso). O advogado e a Agência se retrataram no dia seguinte, mas realmente parte do mal já estava feito. 


O problema com essa "mentira" é a primeira parte dela. Derramou-se sangue objetivamente e há gente no hospital até hoje. Foi um massacre, sem dúvida. Massacraram-se sonhos, destruíram-se os poucos pertences de pessoas extremamente humildes, se introduziram traumas que aquelas crianças jamais vão esquecer, mesmo que um dia não se lembrem de terem estado ali. Uma barbárie, uma demonstração cabal de quão fina é casca de civilização que cobre a democracia liberal. Uma praça de guerra, basta ver as fotos. 


E há mais um detalhe: a Polícia Militar é uma herança das mais macabras da ditadura militar. Uma corporação que atira primeiro e pergunta depois, o braço armado do "Estado Democrático de Direito" contra os miseráveis, os diferentes e os perdidos. Contra, em suma, aqueles que não consomem e portanto não são cidadãos. Uma corporação cujo objetivo é destruir o "inimigo". Não tenho dúvida que, se eles achassem que poderiam sair impunes, as balas de borracha teriam sido de metal mesmo.


A melhor parte da Segunda Verdade de Aloysio vem no final, quando ele acusa o Secretario Nacional de Articulação Social, Paulo Maldos de mentir. Maldos foi atingido por uma bala de borracha durante a ação da PM. Existem vídeos não só da bala como também do ferimento. Mas Aloysio, cioso que é do Estado Democrático de Direito, exige o Boletim de Ocorrência e o Exame de Corpo de Delito. Além de, claro, tentar desqualificar Maldos: "ativista", "instalado em uma sinecura", "ex-combatente de uma guerra que não houve" - o senador talvez devesse assistir alguns dos vídeos da guerra que não houve. Ou o depoimento do próprio secretário.


Mas vamos adiante. A terceira mentira denunciada pelo senador é "Não houve estrutura para abrigar as famílias". Aqui vale a pena ler a nota emitida outro dia da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, onde se lê que, após uma inspeção em quatro abrigos (e não oito como diz o senador. Aliás, no dia do ataques e nos dias seguintes a prefeitura e a imprensa local falavam em apenas dois abrigos), foram constatadas várias violações dos direitos humanos dos desabrigados, entre elas "a ausência de condições de higiene, saúde e alimentação adequada nos abrigos; superlotação nos alojamentos; negligência psicológica, falha na comunicação entre agentes do Poder Executivo local, entre si, e com os desabrigados; entre outras violações". 


Aloysio diz ainda que a operação foi planejada por mais de quatro meses e envolveu diversos órgãos da Prefeitura e do Governo do Estado. Os quatro meses, aparentemente, saem da boca da juíza do caso, ao congratular a PM pelo serviço bem feito (aliás, essa entrevista dava outro post, mas deixa para lá). Sobre isso, só resta citar o Procurador do Estado de São Paulo Marcio Sotelo Felippe: "Quatro meses! Em nenhum momento desses 4 meses ela se deteve para pensar que, senhora da jurisdição, estava ao seu alcance dar ao caso uma solução que não resultasse naquela inominável violência, naquela barbárie? Que havia precedentes jurisprudenciais, que estão  sendo publicados  às dúzias nas redes sociais? No entanto, tudo que ela diz agora é que a Polícia Militar prestou um serviço “motivo de orgulho”: a Polícia Militar cumpriu seu dever. Ela cumpriu seu dever". 


Do texto do procurador sai então o enunciado da Terceira Verdade de Aloysio: se você vai massacrar uma população pobre, é de extrema importância planejar todos os detalhes com bastante antecedência. Isso remete, naturalmente, ao choque de gestão e à eficiência gerencial, temas caros a tucanos de todas as plumagens.


A última mentira citada por Aloysio é "Nada foi feito para dar moradia aos desabrigados". O senador diz que, além da oferta de aluguel social, foram construídas 2500 moradias populares nos últimos anos em São José dos Campos. E que o governador Alckmin, sempre prestativo, prometeu construir mais 5000. 


Há duas questões interessantes na Quarta Verdade de Aloysio. 


A primeira é o número. A imprensa conservadora e todos os atores envolvidos na barbárie (ei, não fui eu quem disse, foi ela) tem feito um esforço hercúleo para diminuir ao máximo o número de moradores desalojados. Dos 9000 informados antes da invasão, já se falou em 6000, depois em 3000. Reinaldo Azevedo, por exemplo, adora esse numero. Afinal, massacrar 3000 é bem melhor, eleitoralmente, que massacrar 9000, não é? Em todo caso, se fossem apenas 3000 pessoas, 1000, talvez 1500 famílias, porque seriam necessárias 7500 moradias?  Aliás, não sabemos quem mora nas 2500 casas já construídas. Certamente não os desalojados do Pinheirinho.


A segunda questão nos remete de volta à Primeira Verdade de Aloysio. Lá ele fala algo sobre o Ministério das Cidades fazer promessas vazias, "sem assinatura, sem dinheiro, sem cronograma para reassentar famílias nem indicação de áreas". Mas o Alckmin pode, né? Prometer no vazio. Sem data, orçamento ou área...


Resta o fato de os "desabrigados" o serem apenas pela incompetência política e pela ganância empresarial. Pela omissão do poder público, especialmente da Prefeitura e do Estado, ambos controlados pelo PSDB durante toda a história da invasão e da batalha judicial que se seguiu.


Assim, a Quarta Verdade de Aloysio parece ser que qualquer problema social causado pelas incompetência ou pela ganância, caso tenha alguma repercussão eleitoralmente danosa, pode ser resolvido ex-post-facto com promessas firmes de ação futura, ação que teria evitado a ocorrência do problema em primeiro lugar...


Enfim, basta um pequeno artigo, um texto aparentemente tão objetivo, tão factual. Basta isso para entendermos porque a aliança conservadora perde eleições nacionais há mais de uma década, porque a oposição desaparece sem deixar vestígios, porque o PSDB foi varrido do mapa em várias regiões do país e agora está sitiado no Sudeste. Basta ler, não o texto, mas os pressupostos que o informam e as razões da perdição da oposição ficam cristalinas. 

Um comentário:

  1. Belo texto, tentar olhar para os pressupostos implícitos em um discurso pode nos dizer muita coisa.

    "uma mentira não é uma força newtoniana, à qual sempre corresponde uma verdade de igual intensidade e sentido contrário. O que uma mentira esconde não é uma verdade, mas um interesse."
    Gostei particularmente disso.

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